Coerência: a aquisição de sentido do texto
Subi a porta e fechei a escada.
Tirei minhas orações e recitei meus sapatos.
Desliguei a cama e deitei-me na luz
Tudo porque
Ele me deu um beijo de boa noite...
(Autor anônimo)
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Podemos dizer que esse texto é incoerente? É possível descobrir nele alguma unidade de sentido ou intenção? Ele “disse” alguma coisa??? Se sim, como encarar o fato de as palavras estarem numa disposição linear que resulta sem sentido? A porta sobe? A gente fecha as escadas? Como se desliga a cama e se deita na luz? Como assim? Recitar os sapatos?
Ou esse texto não faz o menor sentido, ou ele passa a fazer todo o sentido quando percebo que a desordem das palavras é proposital. E é essa desordem que nos diz, de uma forma bem particular, que os amantes perdem o sentido das coisas, veem numa outra ordem. Tudo faz sentido quando lemos os dois últimos versos do poema.
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Apesar de toda “desarrumação das palavras”, podemos dizer que esse é um texto coerente, pois se pode recuperar uma unidade de sentido, uma unidade de intenção.
A coerência não é, portanto, uma propriedade estritamente linguística e nem se prende , apenas, às determinações meramente gramaticais da língua. Ela as ultrapassa. Sendo assim, o limite é a funcionalidade do que é dito, os efeitos pretendidos, em função dos quais escolhemos esse ou aquele jeito de dizer as coisas.
Podemos dizer então que a coerência depende dos elementos linguísticos, mas não se limita neles. Depende também de outros fatores: contextual, pragmático, extralinguístico, ou seja, depende de outros fatores e não só daqueles puramente internos à língua. Desse modo, não é a língua que comanda totalmente nossas ações verbais. Pelo contrário, nós é que comandamos, que escolhemos como dizer o que queremos dizer ( embora haja sempre alguma determinação linguística inviolável). Não existe, portanto , uma coerência absoluta. Ela vai depender da situação, dos sujeitos envolvidos, de suas intenções comunicativas, do contexto em que acontece.
Referência:
ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras - coesão e coerência. São Paulo, Parábola Editorial, 2005.